O FISL é reconhecidamente um evento que vai para além do software livre. Nele, em sua programação formal e em seus corredores, vemos pautas relacionadas à cultura livre em geral sendo tratada por vários de seus participantes. Isso perpassa a cultura digital, a inclusão digital, a cultura dos povos originários, a metareciclagem, o ativismo ambiental, o hacking de software e hardware, a cultura negra, a ciência de garagem, a cultura urbana, a bricolagem, o remix, o direito autoral, ativismo contra patentes, os hacklabs, coletivos por transparência pública, e muitas outras variações ou nuances de movimentos afim.
Este amálgama de movimentos que mantém uma área de intersecção com as comunidades de software livre tiveram espaço para se tornarem protagonistas durante o governo Lula. Diversas pautas desses grupos foram transformadas em políticas públicas pelo governo, como o compromisso em usar e fomentar o desenvolvimento de software livre na administração pública, o uso de padrões abertos também nesta esfera, promover a inclusão digital usando software livre, criação de um plano popular de banda larga, marco civil da internet explicitando nossos direitos no ciberespaço e muito, muito mais.
O Ministério da Cultura, capitaneado por Gilberto Gil e em seguida por Juca Ferreira, teve papel de destaque neste movimento de aproximação de pautas entre cultura livre e o governo petista. Podemos tirar vários exemplos que apontam este caminho durante a gestão da dupla: os projetos Casa Brasil, Cultura Viva, Pontos de Cultura, apoio ao Creative Commons, luta pela flexibilização do direito autoral, debates sobre cibercultura, e mais.
Diante desse cenário, podemos dizer que uma boa parte da comunidade que participa do FISL, para além da organização do evento que já é em si majoritariamente petista, se aproximou e defendeu as políticas implementadas pelo governo do PT, pois afinal de contas essas políticas eram nada mais que suas próprias pautas. Foi esse grupo que entrou na campanha por Dilma, com a ideia de quê a então chefe da casa civil daria seguimento e aprofundaria essas políticas quando presidenta.
Dilma e o apoio a cultura digital durante o FISL 10 – por que mudou?
Entretanto, nada disso aconteceu. E a quantidade de revezes que o pessoal da cultura livre somou durante estes primeiros dois anos de mandato Dilma é bem grande para dizermos que foram apenas questões pontuais. Tentando recapitular alguns: PNBL totalmente aquém do que defendíamos, desmanche do MINC e dos programas Casa Brasil, Cultura Viva e Pontos de Cultura, retirado apoio ao Creative Commons e as leis de flexibilização do direito autoral, nenhuma justificativa a sociedade civil sobre o #ForaAna, adiamento de migração de determinados setores do governo para o uso de software livre, retorno de licitações milionárias para aquisição de software proprietário, falta de apoio ao marco civil, etc.
Por tudo isso, durante o FISL 13 foi redigida e lançada uma carta aberta à presidenta Dilma, descrevendo a situação que citei acima mais outros assuntos caros para nós que fazemos esse tipo de ativismo. A bem da verdade, quase um mês após o lançamento desta carta, eu pelo menos ainda não vi qualquer repercussão sobre o assunto vindo de setores do governo. Mas, enfim, a ação foi feita e vamos acompanhar os futuros desdobramentos por ambos os lados.
Penso que as comunidades que comentei neste texto estão passando por um momento de transição, onde após quase uma década próximas ao governo estamos voltando a um tipo de movimento que fazíamos antes do Lula, mas claro, com algumas diferenças principalmente relacionadas às conquistas dos últimos anos. Depois de termos ido tão longe, não queremos retroceder. E esses coletivos aparentemente diferentes entre si agora estão mais próximos, se reconhecem e trabalham juntos. Trazendo uma metáfora da revolução industrial com base na termodinâmica para nosso contexto cibernético/digital, “ainda temos muita lenha para queimar”.
Como ficará a relação cultura digital, governo e PT, é algo que ainda está um tanto nebuloso. Entretando, duvido que caso o cenário não mude, o apoio ao próximo candidato petista será assim tão direto quanto foi na última eleição.
Gostaria de ouvir a opinião dos amigos aí nos comentários. Segue a carta aberta do FISL à Dilma.
Carta aberta à Presidenta Dilma Rousseff
Nós, participantes do 13º Fórum Internacional Software Livre, realizado em Porto Alegre entre 25 e 28 de julho de 2012, tomamos a liberdade de escrever esta carta pública endereçada a Excelentíssima Presidenta da República Dilma Rousseff, em nome da comunidade software livre brasileira, com o objetivo de manifestar nossa posição diante das políticas públicas na área de tecnologia da informação e internet implementadas por vosso governo.
Não poderíamos deixar de relembrar aqui a histórica visita que Vossa Excelência, e o então Presidente Lula, fizeram a este mesmo fórum, em sua décima edição, em 2009. Esta visita, que muito nos orgulhou, foi uma verdadeira celebração das liberdades digitais, e um reconhecimento dos esforços da comunidade software livre internacional, e, especialmente brasileira, na luta pela manutenção do conhecimento como bem comum. Os avanços e conquistas invejáveis produzidos pelas políticas públicas do governo federal do Brasil em direção às liberdades e à soberania tecnológicas foram reconhecidos e reafirmado o compromisso com esses valores.
Além do encontro do então Presidente Lula com os principais expoentes da comunidade software livre internacional, o momento foi marcado por seu discurso memorável, no qual o Presidente afirmou que em seu governo era “proibido proibir”, que “Lei Azeredo é censura”, além de determinar publicamente ao então Ministro da Justiça, Tarso Genro, a construção de um marco civil da internet.
Na oportunidade, Lula também reafirmou a defesa do software livre no seu governo, e foi ovacionado pelo público presente ao afirmar, em nome de todos os brasileiros:
“Nós tínhamos que escolher: ou nós iríamos para a cozinha preparar o prato que a gente queria comer, com os temperos que nós queríamos colocar e dar um gosto brasileiro para a comida, ou nós iríamos comer o prato que a Microsoft preparou para a gente. E, graças a Deus, prevaleceu, no nosso país, a questão e a decisão pelo software livre”.
Além do compromisso assumido e cumprido durante o Governo Lula, e reafirmado pelo então Presidente durante o fisl10, em 19 de janeiro de 2010, no primeiro mês do vosso governo, foi publicada a Instrução Normativa nº 1, que dispôs sobre os critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal. Dentre as diretrizes, destacam-se as determinações que proíbem o uso de componentes, ferramentas, códigos fontes e utilitários proprietários, e também a dependência de um único fornecedor, dando preferência ao uso de software livre – mais uma mostra de que o governo federal tinha ciência dos benefícios do tratamento dos bens imateriais como bens de domínio público, e da importância da manutenção do livre acesso ao conhecimento e seu compartilhamento como ferramenta de incentivo à democracia.
No entanto, hoje algumas questões pontuais têm deixado a todos nós, militantes do software e do conhecimento livre, apreensivos:
- A retirada da licença livre Creative Commons do site do Ministério da Cultura e sua mudança de posicionamento em relação à reforma dos direitos autorais e às liberdades civis na internet;
- A introdução, no acordo do Ministério das Comunicações com as Teles em relação ao plano nacional de banda larga (PNBL), de um grave precedente de limitação e tarifação do volume de dados que trafegam pela conexões das operadoras – como uma espécie de pedágio ou taxímetro cobrado por conteúdos de terceiros;
- A iniciativa no INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial – de abrir uma consulta pública indicando o patenteamento do software no Brasil, na contramão de uma das maiores lutas do movimento software livre internacional;
- O Pregão Eletrônico (N. 116/7066-2012 – GILOG/BR) da Caixa Econômica Federal, na ordem de 112 milhões de reais, que contraria um histórico de investimento em desenvolvimento e adoção de softwares livres produzidos especificamente para a instituição.
Algumas décadas depois de os softwares e a internet terem se tornado elementos indissociáveis de nossas rotinas, já podemos afirmar com sólidos argumentos econômicos, científicos e sociais que:
- o incentivo e a manutenção da luta pelo Software Livre,
- a ausência de patentes de software, e a proteção da criação dos mesmos pela lei dos direitos autorais,
- a manutenção de uma internet livre, neutra e inimputável,
são estratégias não só viáveis como indispensáveis para o despontar do Brasil como um país internacionalmente competitivo no que diz respeito à manutenção da inovação tecnológica, bem como para a manutenção das estratégias de democratização do conhecimento através da Inclusão Digital.
Por fim, confiantes de que podemos restabelecer a interlocução do governo federal com a comunidade software livre, da cultura digital e ativistas por direitos civis na internet, pedimos, publicamente, uma audiência de nossos representantes com Vossa Excelência para que possamos retomar o diálogo construtivo que sempre tivemos com o governo federal nestes últimos anos.
Aproveitamos também para manifestar nosso apoio e parabenizá-la pela condução da política econômica, dos programas sociais, em especial de combate à fome e à pobreza, e na firme postura contra a corrupção em nosso país.
Sem mais, subscrevemo-nos.
Ricardo Fritsch
Coordenador geral da Associação Software Livre.org, em nome dos participantes do 13º Fórum Internacional Software Livre