Irei dar a dica de um texto muito bom do Aaron Shaw, que se encontra no Le Monde Diplomatique. Trata-se do Cultura livre, movimentos e humanização do Capital. Segue, na íntegra:
Cultura livre, movimentos e humanização do Capital
Como refletir sobre a Tecnologia do Conhecimento e a Produção Colaborativa pelo ponto de vista do conhecimento livre, aberto, não proprietário?
Talvez um bom início seja pensar tal questão pelo viés do conhecimento não proprietário como contraditório ao mercado. De conhecimento que, livre, está sujeito a grandes abusos (levados ou não a cabo) pelo capital e pelo mercado.
Nos anos 40 do século 20, o sociólogo estadunidense Karl Polanyi escreveu sobre o Liberalismo e os abusos do mercado. Sua hipótese era de que, para se humanizar, o mercado livre, ou seja, neoliberal, tem de criar uma “economia submersa (embedded, no original)” na sociedade e na cultura. Quer dizer, uma economia que responda às necessidades sociais, à proteção social. Em seus termos, Polanyi fala de mercadorias fictícias: terra, trabalho e dinheiro.
Na sociologia estadunidense de hoje, fala-se muito sobre o conhecimento ter se tornado, ele também, uma mercadoria fictícia. O que nos leva à seguinte questão: o conhecimento é mesmo uma mercadoria fictícia, nos termos das teorias neo-polanyianas?
Se sim, os recentes cercamentos sofridos pela propriedade intelectual seriam a mais nova frente de batalha no esforço para que a sociedade viabilize essa “economia enraizada”. E, como tal, os conhecimentos livres (o software livre e a cultura livre, por exemplo) seriam ferramentas-chave para a proteção social.
Até aí, o sentido é cristalino. Acontece que, se pensarmos no assunto de modo mais aprofundado, as teorias neo-polanyianas parecem ter chegado a um momento no qual não mais conseguem explicar a realidade. Isso porque, hoje, vemos grandes corporações, tanto nacionais como multinacionais, com produtos locais e globais, se apropriando desse conhecimento livre e percebendo que esses processos abertos, livres, acessíveis, podem funcionar como novos pólos, novas fontes de lucros.
Enfim, as implicações sociais da adoção, da incorporação do conhecimento livre pelas grandes forças do capital, levam o conhecimento livre (que, em si mesmo, não é nem precisa ser anticapitalista) a tornar-se ferramenta capitalista.
Vejamos o caso do Brasil. O governo Lula, em 2003, fez, numa interface com o mercado de Tecnologia da Informação, grandes adoções e migrações para o software livre nos Ministérios brasileiros. Migrar um Ministério é um negócio enorme, você tem 5.000 máquinas, um sem número servidores, workstations, desktops, escritórios. E, se você quer fazer uma migração dessa magnitude, tem que contratar alguém para te ajudar.
E quem é que você vai contratar pra fazer essa migração?
Você vai chamar a IBM, a Sun, as grandes consultorias multinacionais de mercado. E, a princípio, o resultado é bom. A IBM Brasil, por exemplo, dobrou seu número de empregados entre os anos de 2004 e 2006. Isso é impressionante, trata-se de uma empresa que aumentou seu número de trabalhadores brasileiros num momento de reformulação do mercado global. E isso significa, talvez, uma possibilidade de distribuir riqueza de uma maneira menos desigual.
O que acontece em seguida, porém, é que, ao assinar contratos com o governo, a IBM também aumenta seus lucros. E esses ganhos, embora vinculados ao conhecimento livre, não são uma forma de proteção social. Porque o enriquecimento das grandes corporações, como defende Polanyi, não necessariamente atende às necessidades da sociedade.
Enfim, esse é um mecanismo simples, sem grandes segredos. Mas sua implicação para a teoria do conhecimento livre, para a estratégia das pessoas que apóiam o conhecimento livre, é importante. Isso significa que não basta que trabalhemos na ampliação do conhecimento livre como tal. É necessário que pensemos de modo estratégico, que produzamos conhecimentos livres não apenas em si mesmos, mas para si mesmos. Um mote que, na verdade, pertence a Marx.
O conhecimento livre em si é apenas uma possibilidade. Mas a partir do momento que os conhecimentos livres compartilham de situação similar, e que as pessoas se beneficiam desses conhecimentos, o conhecimento livre passar ser livre para si mesmo. Torna-se, então, mais clara a existência de interesses políticos, bem como sua necessidade de vinculação às questões institucionais e à realização da proteção social, do “mercado enraizado”.
Nos Estados Unidos, por exemplo, fala-se muito, hoje, da questão da Neutralidade da Rede. E vemos que, nesse campo, os ativistas estão se aliando às grandes corporações que apóiam o conhecimento livre (como Google, Sun e IBM) para fazer avançar a possibilidade de manter a Internet livre de monitoramentos excessivos e bloqueios.
Essa aliança é um novo passo para os movimentos do conhecimento livre, um passo importantíssimo, também, no Brasil. Hoje, assistimos ao debate sobre o Projeto Azeredo. Não temos a certeza de que os movimentos livres tenham, eles mesmos, a força política e econômica para vencerem o debate. Pode ser que, no caso do Projeto do Azeredo, obtenham alguma vitória — mas não podemos garantir como se sairão em projetos futuros.
O sucesso do conhecimento livre vai depender da capacidade dos movimentos livres de se aliarem com as forças do grande capital. O que não é fácil, porque as forças do grande capital podem se apropriar da capacidade dos movimentos livres. Enfim, vivemos um momento de construir, de ampliar o movimento pelos conhecimentos livres,de aumentar as possibilidades do Conhecimento. Mas, para que isso aconteça, será necessário, antes, que ampliemos os limites do movimento como tal.