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Sobre o livro “Uma História de Desigualdade”

Finalizei a leitura do premiado livro do Pedro de Souza, “Uma História de Desigualdade – A Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil 1926 – 2013“, baseado na tese que defendeu no programa de sociologia da UnB.

É um livro de fôlego e que faz jus a todos os elogios que recebeu desde o lançamento. A partir de dados tabulados do imposto de renda no Brasil em uma série histórica que cobre quase um século, Pedro faz uma análise sobre a concentração de renda no topo, correlacionando o nível dessa apropriação com leituras conjunturais e mudanças políticas que ocorreram, realiza comparações com dados similares de outras nações, e tira conclusões e apontamentos em geral muito instigantes e pouco afeitos ao senso comum que temos sobre o tema no país.

O livro tem muitos pontos interessantes e que saltam aos olhos durante a leitura. Meu objetivo com esse post não é fazer uma resenha do livro, mas destacar 4 pontos que me impactaram sobremaneira.

1. O Brasil é mais desigual do que imaginamos

Que o Brasil é um país extremamente desigual deveria ser algo óbvio para todos. Todas as capitais e grandes cidades brasileiras dispõe de, em um mesmo espaço geográfico, bairros com IDH nórdico ao lado de bairros com IDH africano. Isso é reflexo da extrema disparidade de renda do país, onde 60% da população vive com menos de um salário mínimo.

No livro, para tratar da concentração de renda no topo, Pedro primeiro precisa delimitar “quem” seria esse topo. Nos estudos ele utiliza o já tão em voga 1% mais rico, mas também expande para outros contextos que vão dos 15% ao 0,01%, o que permite análises interessantes e mostra o quão desigual nosso país é.

Para os dados de 2013, o 1% mais rico recebeu 23% da renda total. Esmiuçando esse subgrupo, encontramos que o 0,1% deteve 10% da renda, enquanto o 0,01% ficou com 5%.

Por outro lado, se a análise é expandida para o 10% mais rico, a renda total recebida passa a ser de 51% – e é isso, os 10% mais ricos detém mais da metade da renda disponível no país.

E qual seria a renda compatível com cada estrato analisado? Aqui o nível de desigualdade brasileiro chama atenção novamente. Também com dados de 2013, o 0,1% mais rico tem uma renda média de R$ 2,8 milhões por ano – o que dá R$ 235 mil ao mês. Já o 1% recebe R$ 636 mil ao ano, que é R$ 53 mil mensais – 4,5 vezes menos que o 0,1%.

A análise a partir dos 5% já caracteriza o que seria a “classe média assalariada” do país: o 5% recebe R$ 230 mil ao ano, que é R$ 19 mil mensais; o 10% mais rico recebe R$ 140 mil anuais, que é R$ 12 mil mensais.

Ou seja, para estar no grupo que se apropria de mais da metade da renda do país, basta ganhar mais que R$ 12 mil por mês.

2. O passado colonial não explica no todo o nível de desigualdade do Brasil

Esse achado não é originalmente do autor da tese, mas os dados por ele levantados e analisados dialoga com essa explicação pouco ortodoxa. O pressuposto é que, no início do século passado, o nível de concentração de renda no topo era muito próximo entre as diferentes nações, e a menor desigualdade hoje observada em países europeus é um produto muito recente motivado basicamente pelas guerras que ocorreram.

O autor dessa explicação, Jeffrey Williamson, aponta que a redução da desigualdade nos países desenvolvidos foi resultado do que ele chama de “grande nivelamento”, que ocorreu quando a guerra, representada por seus efeitos e sua dinâmica econômica, foram responsáveis por reduzir a concentração no topo.

No livro são analisadas as concentrações de renda para diferentes nações e os dados são reveladores. De fato, entre 1930 e 1935, o 1% mais rico em vários países detinham níveis próximos da renda, como no Reino Unido com 17%, Japão com 18,5%, Noruega com 12,7%, entre outros. Nessa época o Brasil já liderava o ranking com 24,3%.

No período após a guerra, de 1970 à 1975, o 1% mais rico dos países citados anteriormente detinham, respectivamente, 6,8%, 7,8% e 5,7% da renda, enquanto a contraparte brasileira ficava com 24,6%.

Dessa forma, sem ser taxativo, a ideia do passado colonial não justifica “exclusivamente” nosso grau de desigualdade atual quando comparado com outros países. O Brasil não passou pelo grande nivelamento dessas nações e, em alguma medida, isso contribuiu para não termos reduzido a concentração de renda no país ao longo do século que passou.

3. Não houve redução considerável da concentração de renda desde a metade dos anos 90

Esse achado é intrigante, e é necessário contextualização e conceituação para explicá-lo.

Concentração de renda no topo não necessariamente quer dizer desigualdade. É possível que certos estratos de renda tenham acesso a mais recursos, reduzindo a renda de estratos intermediários enquanto outros mantém seus ganhos.

O livro é exímio na análise temporal das dinâmicas de apropriação dos vários estratos econômicos. Por exemplo, os dados mostram que a ditadura militar concentrou renda no topo, mas essa renda foi mais apropriada pelos 1% mais ricos do que pelos 0,1%. Análises como essa permeiam todo o livro e é interessante a correlação de mudanças políticas e seus efeitos na concentração em diferentes estratos.

Os dados sugerem uma estabilização para a concentração de renda ao menos dos 0,01% aos 15% mais ricos, desde a segunda metade dos anos 90. Isso pode significar que o aumento de renda dos mais pobres, em especial nos governos petistas, deve ter acontecido com a redução da renda dos “menos pobres”, por assim dizer.

Fruto da política de conciliação petista? Certamente, mas de qualquer forma é um trecho que pode ser aprofundado em futuros estudos do tema, e que coaduna algo relacionado com o ponto anterior e o posterior que destaco nesse post.

4. Não há exemplo de redução da concentração de renda no topo sem rupturas

Esse ponto pode ser o pesadelo da social democracia e da ideia de que conseguiremos reduzir as desigualdades no Brasil a partir de arranjos democráticos convencionais.

Para as séries de dados históricas dos vários países, a concentração de renda do topo deles, e neste caso por consequência a desigualdade também, só foi reduzida em episódios caracterizados no “grande nivelamento”, quando de maneira brusca algo aconteceu e a dinâmica econômica modificou sobremaneira. Para o caso europeu, a guerra foi o motivador dessa redução.

Não há exemplo de países onde uma longa trajetória democrática conseguiu paulatinamente reduzir a desigualdade. Para o caso brasileiro, observando a série histórica do imposto de renda, mesmo tendo havido mudanças nas concentrações ao longo do tempo, elas se mantiveram bastante regulares ao longo de quase um século.

A renda apropriada pelo 1% mais rico era de 20% em 1926; atingiu o topo de 31% em 1942, durante a ditadura varguista;  o interregno democrático reduziu esse número para 18%, quando o golpe militar instituiu a ditadura e elevou a concentração para 26% em 1970 e 30% na transição democrática. Hoje, esse nível está em 23%, pelo menos desde o final da primeira década dos anos 2000.

Nas palavras do Pedro, reduzir a desigualdade no Brasil sem rupturas seria, na conotação mais otimista, realizar algo inédito na história das nações.

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