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Os empresários da computação hackeando capas de livros – a maldita fetichização

Eu realmente não sou de dar atenção para toda essa fetichização que existe sobre os “mega-empresários-hackers” da computação, pessoas como o Gates e Jobs que se tornaram produtos de consumo para jovens ávidos por ganhar rios de dinheiro com tecnologia. Normalmente, deixo o assunto quieto e fico na minha, ou me satisfaço em lançar alguma crítica sobre algum aspecto ou das figuras-ídolos ou da fetichização tola.

Alguns amigos pensam que é por minha militância com o software livre. Não camaradas, realmente não é. É por uma série de outras questões, para mim tão pertinentes quanto a abertura do código-fonte de um produto, o modelo de negócios destrutivo e monopolizador sem qualquer ética, ou a constante mineração e venda de dados sobre nossa privacidade.

A fetichização é extremamente negativa. Ela chega ao ponto da mediocridade. Vá a uma livraria e veja alguns dos títulos sobre Steve Jobs. Um ou outro livro são interessantes estudos sobre a vida do empresário. Outros são essa mistura horrenda de administração com auto-ajuda, “você é do tamanho dos seus sonhos e tudo é possível”, “lidere para vencer”, etc. As vezes penso que o pessoal da livraria fica com dúvida sobre onde colocar um livro desses.

Existem muitos outros fatores que considero negativos, mas me aterei apenas a esta questão de livros pois foi este o assunto que me fez querer escrever sobre esse tema. Enfim, a fetichização abre um mercado para livros de qualidade duvidosa sobre estes mega-empresários, que por estarem em voga, terão boa possibilidade de serem aceitos pelo público independente da qualidade do texto.

Aí vem a Editora Évora e publica o Os Heróis da Revolução – Como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg e outros mudaram para sempre as nossas vidas. Vejam a capa:

 

 

Parece legal né? E é. Ou, seria.

Este livro é a versão brasileira de um livro de grande importância sobre a história do movimento hacker, escrito pelo editor da Wired Steven Levy (ele também um (ex-)hacker) em 1984, o Hackers: Heroes of the Computer Revolution. A tradução brasileira é da edição comemorativa de 25 anos, lançada em 2010.

Vejam abaixo a capa desta edição:

 

 

Os nomes em verde são algumas das personalidades retratadas no livro. Há bem mais que Jobs, Woz, Gates e Zuckerberg nele, concordam? Na verdade, o “pai-criador” do Facebook nem está nele, perceberam?

Você diria que este é o mesmo livro que foi lançado no Brasil?

Temos aqui em casa um exemplar do livro Hackers: Heroes of the Computer Revolution, que é da Aracele Torres, mestranda em história da ciência na USP, que pesquisa os hackers e o movimento software livre.  Hackers… é um livro que descreve a história do movimento hacker em meio aos centros de pesquisa de universidades americanas, aos ratos de laboratório e a contra-cultura da época. Há muitos nomes conhecidos em suas páginas, com suas participações e contribuições para a comunidade hacker em vários aspectos: Marvin Minsky, John McCarty e os pioneiros da inteligência artificial; Ted Nelson e o Computer Lib; Efrem Lipkin, um dos fundadores do Community Memory; Richard Stallman, tido pelo autor como O Último dos Hackers; os phreakers, hackers de telefones públicos; o Homebrew Computer Club; desenvolvedores de games; e muito mais.

Ou seja, toda a riqueza da história do movimento hacker que há no livro foi limada na capa da edição brasileira para os 4 empresários-hackers, “gurus” dessa geração. Mas tem mais.

Repercutindo o assunto na internet, o Miguel Vieira perguntou se, de repente, a editora original e o autor sabiam dessa decisão da Évora e teriam aprovado a capa. Então o Miguel foi atrás e tuitou para o Levy. A conversa está aqui.

Pois bem, é o que o próprio autor diz, em tradução livre: “Steve Jobs praticamente não está no livro” (Ele também diz que preferia o Stallman na capa! :D). Dos 4 que a Évora colocou na capa da edição brasileira, Woz e Gates são mais falados, mas são apenas uma pequena parte de toda a extensão coberta pelo texto. Zuckerberg entra em um apêndice da comemoração dos 25 anos da obra, que trata da geração internet – ele é citado em uns 3 parágrafos.

Ou seja, para além da decisão da Évora de ofuscar várias gerações de hackers, ela, em alguma medida, vai entregar um produto que não condiz com aquilo que sua propaganda apresenta. Não há no livro uma dissertação sobre como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg e outros mudaram para sempre as nossas vidas, isso porque, simplesmente, estes 4 não são protagonistas desta história como contada no livro.

É possível entender o porquê dessa decisão da Évora: aproveitar que os gurus fetichizados conseguem vender qualquer coisa que levam estampados seus nomes e rostos. Mas, a que preço?

Consigo imaginar algumas situações sobre a relação das pessoas com este livro, e destaco 3: uma, a pessoa que compra por causa da capa com os 4 e se surpreende com a riqueza do livro e da história dos hackers, e gosta do que está lá; a outra, que penso ser a mais comum, uma pessoa que compra o livro por causa dos 4 e não encontra nada acima de 10 páginas falando dos 4 juntos (e o Zuckerberg com 3 parágrafos); e por último, uma pessoa interessada na história dos hackers, olha o livro com os 4 empresários e pensa “mais um daqueles infindáveis livros de administração+auto-ajuda dos gurus”, e vai para outra estante.

Finalizando amigos, eu realmente tento não dar atenção para todo esse movimento sobre estes empresários da computação e os sentimentos de comoção que eles geram em muitas pessoas. Mas por favor, quando isso começa a interferir com assuntos um pouco mais sérios, como a história de todo um movimento e uma obra muito interessante para quem estuda este movimento, é de ficar se perguntando qual será o próximo alvo destas decisões de marketing baseada em consumidores que abraçam qualquer coisa que lançam sobre seus ídolos – tipo Steve Jobs em 250 frases.

No fundo fico feliz com a publicação desse livro em português, espero que tragam mais obras sobre o assunto. Mas por favor, vamos evitar o tipo de atitude que gerou essa capa – e que acredito, ainda vai gerar alguma confusão.

@araceletorres: reduzir várias gerações de hackers para meia dúzia de showbussiness hackers. Eu odiei!

PS.: não vou comentar que tiraram o nome hacker na capa da edição brasileira… e que não complementaram o “revolução” com algum adjetivo sobre computadores, como no original. Dariam outros posts. 😉

7 comentários em “Os empresários da computação hackeando capas de livros – a maldita fetichização”

  1. Fala cara. Grande post. Eu tenho o Hackers, mas ainda não li, vou ver se coloco logo ele na lista de livros a ler. Muito legal o Steven Levy Falando do Stallman =)

  2. Cara, a capa brasileira está mesmo um lixo. Dá muita raiva de uma editora que faz um negócio desse.

    Pensa se também fizessem disso com capas de disco… é destruir qualquer aspecto artístico/autoral da obra para consolidá-la como produto capitalista. Tal como fazem com “tradução” de nomes de filmes. O que vender mais está valendo.

  3. Nossa cara, muito massa seu post. Você não acredita, mas acabei de comprar pela amazon os Heróis da Revolução. Vamos ver se é bacana esse livro. Em relação as capas, sem palavras, você disse tudo. Abraços!

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