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Disnatia X/Potências de X

Nenhuma equipe de heróis me é tão querida quanto X-Men. Lá pelo final dos anos 90 comecei a colecionar por alguns anos, mas em seguida veio o fatídico aumento de preço com as Super-Heróis Premium, o que me acabou desmotivando a comprar. De lá para cá, acompanho esporadicamente, lendo notícias sobre, comprando uma ou outra história fechada e às vezes baixando uns scans.

Ano passado a Marvel se propôs a fazer um grande reboot da franquia, certamente mais para preparar os mutantes para uma aparição no universo cinematográfico do que para facilitar o ingresso de novos leitores. Do anúncio, resolvi comprar as edições brasileiras que foram lançadas nesse último semestre pela Panini.

Originalmente reunidas em 2 arcos, Dinastia X (House of X) e Potências de X (Powers of X) são escritas e arquitetadas magistralmente por Jonathan Hickman, sendo a primeira a história do estabelecimento de Krakoa como a nova nação mutante, e a segunda uma série de histórias do passado e futuro que fornecem apontamentos, se entrelaçam e dão sentido ao arco da primeira.

A ideia desse texto não é ser propriamente uma resenha, mas um apanhado um tanto desconexos de pontos que me chamaram atenção e que gostaria de comentar. Com tempo cada um deles poderia ser um post a parte, mas como isso nunca irá acontecer, que ao menos os rascunhos das ideias venham à público.

Cuidado pois há spoilers.

1. Krakoa e a pauta ambientalista nos X-Men

Nos dias de hoje é muito óbvio relacionar os X-Men às lutas das minorias, mas perde-se a perspectiva de que a construção desse tema se deu ao longo dos anos, e não desde o início da série. A revista tem uma maneira muito dinâmica de abordar pautas políticas e incluí-las em suas tramas.

O surgimento dos mutantes na Marvel seria consequência da contaminação da humanidade por experimentos nucleares, como as usinas e as bombas – daí o termo “filhos do átomo”, normalmente relacionada aos mutantes. Nesse sentido, os X-Men já traziam um tema muito caro ao ambientalismo, em especial nos anos 60.

Com o tempo Xavier e Magneto passaram a representar uma alegoria para Martin Luther King e Malcom X, e o discurso do movimento negro foi reproduzido nas histórias; o fato dos mutantes despertarem seus poderes na adolescência é uma analogia para a descoberta da sexualidade, que foi expandida para que os mutantes também representassem a comunidade gay; mesmo o preconceito com portadores de HIV foi abordado na série a partir do vírus legado, fatal e que no início só contaminava mutantes.

Nesse reboot os X-Men resolvem criar uma nação mutante em Krakoa, a Ilha Viva – ela mesma fruto de experimentos nucleares que lhe deram “consciência”. A história passa a abordar a utilização de produtos medicinais extraídos da flora da ilha como vantagem na disputa geopolítica e diplomática que os mutantes passam a disputar com demais nações. Mas, para além desses produtos, o próprio modo de vida dos mutantes vai se adaptando à realidade paisagística de uma densa floresta.

Dessa forma podemos esperar que a pauta da proteção ao meio ambiente, tema tão caro diante da colapso climático para o qual estamos caminhando, tem potencial para ser o próximo tema político a ser encampado pelos mutantes.

2. Vantagem tecnológica e política que vem da natureza

Esse tema é derivado do anterior: nas histórias os mutantes ganham muita vantagem tecnológica e política utilizando de maneira sustentável os recursos da natureza disponibilizados por Krakoa.

São plantas que aumentam a longevidade dos humanos, curam várias doenças, e mais. Há casas e estruturas baseadas nas plantas e até um sistema de transporte (no caso, o teleporte).

Guardada as devidas proporções e fantasias, não deixa de ser uma clara mensagem de que a natureza pode nos oferecer muito mais do que os lucros advindo da exploração que a destrói. E, para o brasileiro que vive sob o governo Bolsonaro, não deixa de ser uma mensagem pra nos deixar ainda mais revoltados com o completo descaso pelas nossas florestas.

3. Política mutante

Algo muito bem explorado no reboot é que boa parte das lutas mutantes agora se darão na esfera política: eles precisam ser reconhecidos como uma nação soberana pelos demais países, e para tanto é criado todo um sistema de trocas comerciais e tecnológicas. O reconhecimento de Krakoa vem pela política, acordos, ponderações de vantagens e desvantagens, e não pelo país ser “bonzinho”.

Como uma nação única, agora os X-Men se juntaram a vilões clássicos (Magneto, Apocalipse, Sinistro, Clube do Inferno e outros) para governar e criar as leis que regem os mutantes no mundo inteiro e além dele.

Um ponto muito interessante e complexo, e seria legal vê-lo explorado na série mensal.

4. Heróis?

Os heróis Marvel já são em geral meio “cinzentos”, nem tão bondosos nem tão maldosos, todos falhos em algum momento. Com os X-Men não é diferente, mas talvez esse reboot tenha os deixado ainda mais complexos nessa questão.

Já há muito tempo a frase “os X-Men juraram defender a humanidade que os teme e odeia” serve para descrever a equipe e seus diversos outros times. Mas nessas novas histórias, os X-Men estão mais voltados para criar e manter sua nação, e não para salvar a humanidade de intempéries.

Em vários momentos vemos personagens como Xavier, Ciclope e outros com um discurso mais centrado na causa mutante do que na ajuda aos humanos – a própria maneira como a tecnologia das flores de Krakoa é utilizada é um reflexo disso. O sonho de coexistência pacífica entre humanos e mutantes de Xavier talvez não tenha sido de todo descartado, mas mudou completamente a sua abordagem. A nação Krakoa é o lar dos mutantes e é a ela que os X-Men servem.

Esse deslocamento deve alterar profundamente as histórias das mutantes daqui para frente.

5. Moira MacTaggert

Uma personagem que foi completamente recriada nesse reboot foi a Dra. Moira MacTaggert, que passou de coadjuvante recorrente no papel da supercientista humana a uma mutante que fundamenta e dá sentido a essa nova leva de histórias.

O poder da Moira é reencarnar (no sentido de “nascer de novo”, bebê mesmo) na sua mesma vida, mas mantendo as lembranças das vidas anteriores. É como se ela fosse uma viajante do tempo que sempre volta ao mesmo ponto após a morte, mas guardando todas as experiências que teve nas diferentes linhas temporais que viveu.

Os X-Men devem ser os heróis que mais integraram em sua cronologia cânone a ideia de linhas temporais alternativas e realidades paralelas. Há vários personagens que são viajantes do tempo enviados em diferentes missões (Bishop, Cable, X-Man, Rachel Summers) e realidades que são criadas, destruídas e reconstruídas a partir de eventos chave, e elas volta e meia reaparecem nas histórias (Era do Apocalipse).

No reboot Moira “representa” de maneira muito original esse conceito de viajantes do tempo com missões que alteram a realidade. Em suas diversas vidas Moira viveu diferentes abordagens da luta mutante: o sonho original de Xavier, a tentativa de levar os mutantes para outro mundo, as alianças com Magneto, com Apocalipse, Sinistro, a tentativa de assassinar os engenheiros dos Sentinelas… são muitas e em todas elas os mutantes são dizimados.

A ainda não tentada foi uma aliança completa dos diferentes mutantes e a luta política pela estabilização de uma nação – que é a história contada nesse reboot.

De longe as partes mais empolgantes dessa nova versão dos X-Men são as histórias da Moira. É realmente impressionante o que o Hickman conseguiu fazer aqui.

6. Ninguém mais morre (mesmo)

Morrer no mundo dos quadrinhos é no máximo uma inconveniência passageira. Todo mundo que morre volta, no geral em pouco tempo. A morte de personagens e seu retorno já é algo tão banal que em boa medida esgotou o efeito dramático que a morte provoca.

Mas, ao meu ver, isso não justificaria a possibilidade dos mutantes não mais morrerem. Na história, os X-Men conseguiram combinar tecnologia krakoana, a utilização de alguns poderes mutantes e um backup semanal das lembranças dos personagens (!!!) para ressuscitá-los sempre que morrerem.

Pessoalmente achei isso mesmo muito ruim. Quer dizer tudo bem os personagens morrerem, “canonicamente” eles irão renascer logo mais, utilizando um corpo clonado munido de um backup mental.

Mesmo com o efeito dramático reduzido pela banalização da morte/ressurreição nos quadrinhos, ele não havia sido eliminado por completo. Demais personagens ficavam chocados com a morte de alguém, e não havia garantias de como ou quando seria esse retorno.

A tecnologia de ressurreição mutante tirou um tanto da “humanidade” (desculpem, trocadilho não intencional) dos personagens, e fiquei com a impressão de que foi cortado algum laço de ligação e empatia do leitor com eles.

Por outro lado a ideia de que os mutantes em si são “descartáveis” por serem “clonáveis” fortalece a noção de uma história centrada no Estado, a Nação Krakoa, forte e acima dos demais personagens, seus sonhos e vontades, que estão ali mais para servir a um bem maior e comunitário do que a seus próprios desejos e prioridades.

Conclusão

Há muito mais a falar sobre o reboot, mas no geral esses pontos foram os que mais me chamaram atenção (e também isso é um blog, não um texto da piauí).

Essa renovação da franquia vai se sustentar e manter a qualidade na série mensal? Não sei, mas penso que dificilmente. O problema dos quadrinhos é imaginar possível sustentar décadas e décadas de histórias coesas e interessantes. Nesse sentido os reboots como esse servem para dar uma nova perspectiva, contar novas histórias com os mesmos personagens e levá-los a situações inimaginadas na cronologia convencional, alterando substancialmente o que se conhece e, ainda assim, contando boas histórias.

Dessa forma, Dinastia X/Potências de X já fez um trabalho magistral. Se ficar só por isso mesmo, tudo bem.

Marcações:

1 comentário em “Disnatia X/Potências de X”

  1. Adorei as colocações, escrever lista é uma das minhas especialidades dessa vida de escrever sobre cultura pop e posso dizer que a sua é incrivelmente explicativa. Coisas que nem eu sabia, mesmo sendo leitor de X-Men.

    Que escreva mais, pois a função do quadrinhos é transformar pessoas como você, eu e os demais, em seres que conseguem enxergar as coisas fora da caixinha ou no caso, fora de uma pagina cheia de quadros em movimentos. Sensacional!!

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